segunda-feira, 22 de outubro de 2007

A ARTE SACRA E A PARTICIPAÇÃO NO PERFEITO (cont...)


(última parte)

A LITURGIA E A VOLTA AO ORIGINÁRIO
A renovação litúrgica se orienta decididamente para o essencial, e desta tensa atenção ao nuclear deriva-se o movimento da arte sacra contemporânea. O urgente é precisar onde radica o nuclear-essencial, tarefa muito menos fácil do que poderia parecer num primeiro momento. Um dos principais mentores do movimento litúrgico, Romano Guardini, se esforçou sempre em deixar claro, contra as incompreensões e extremismos que acompanharam este movimento, que a piedade litúrgica, longe de se opor à piedade chamada popular, deve alimentar-se dela. Desta convicção parte sua Via crucis e seu livro sobre o Rosário de Nossa Senhora. Mais tarde, liturgistas de menor capacidade filosófica e com horizonte humanista mais pobre do que o de Guardini mostraram certa aversão ao sentimento e à sensibilidade populares. Sob pretexto de purificação e elevação da piedade, algumas fontes de devoção indispensáveis para dar à atividade litúrgica sua plenitude de sentido, que é a entrega pessoal - não individualista, mas tampouco coletivista, mas rigorosamente comunitária - ao Senhor de todas as coisas, se exauriram.

Para entender plenamente a arte sacra atual e conduzi-la por caminhos fecundos é conveniente ver suas características, antes resenhadas, como aspectos diferentes da busca do profundo. Assim, a moderação nos meios expressivos deve servir para uma melhor e mais profunda compreensão do essencial. A autenticidade no tratamento dos materiais é pressuposto para a penetração no poder expressivo peculiar dos mesmos. A revalorização da sensibilidade e da imagem é determinada por essa atenção a vertentes metassensíveis da realidade, tal como resplandecem nos símbolos, no rosto das realidades carregadas de sentido. Não esqueçamos que a grande tarefa do movimento litúrgico, junto com o movimento de juventude, foi voltar ao originário, às fontes naturais de expressão - a água, o fogo, os metais, a luz... Daí sua busca do irredutível, daquilo que ostenta um rosto, uma face inalterável, não redutível a elementos amorfos não qualificados.


O MISTÉRIO SE DEFINE POR SUA RIQUEZA INESGOTÁVEL
Esta volta ao natural-originário constitui a melhor preparação para renovar o sentido do mistério, que não é primordialmente algo oculto, mas algo extremamente profundo e valioso que se revela claramente, mas se revela como o que é, como uma realidade inesgotável e inacessível a toda forma de conhecimento que implique domínio. Para uma tradição racionalista, com obsessão por obter clarezas racionais exaustivas, o mistério se definiu por sua opacidade à compreensão sem limite. Hoje em dia tende-se, de preferência, a contemplar o mistério a partir da perspectiva da riqueza, do que tem de fecundante para quem entra em sua área de influência.O aprofundamento no mistério do Deus que se revela na face visível de Cristo é a estrada real que se abre ao artista que quer níveis dignos da arte verdadeiramente sacra. Assim como na vida religiosa a iniciativa compete a Deus, no processo artístico é o profundo valioso que pronuncia a primeira e a última palavras. Que estas palavras se tomem perfeitamente audíveis é trabalho da técnica atual de nudificação. Mas esta, sem a intuição inicial das realidades nucleares da fé e da vivência religiosa, se reduziria a um mero exercício de destreza técnica carente de profundidade artística.


3. A ARTE E A FUNDAÇÃO DE ÂMBITOS DE PRESENÇA

A censura que às vezes é feita á arquitetura sacra atual de corresponder a uma forma de inspiração protestante pode ser justificada se o afã de pureza significa apego ao meramente in-objetivo, e aversão total a todo o figurativo. Em suas diversas manifestações espirituais - filosofia, teologia, liturgia - os protestantes costumam mostrar certa propensão ao inobjetivo. Daí seu cultivo, eminentemente germânico, desse difuso clima acolhedor chamado "Stimmung". Os católicos se caracterizam mais por estarem sujeitos ao rigorosamente pessoal, em seu sentido mais rigoroso. A tendência a diluir o meta-objetivo em algo meramente in-objetivo é extremamente grave, porque deixa o homem numa espécie de terra de ninguém, a meio caminho entre a objetividade desprezada - mundo confiado e pegável - e a super-objetividade entrevista na forma precária da inobjetividade.

Naturalmente, frente ao fixismo do objetivismo coisista, a valorização do inobjetivo dá uma forte impressão de mobilidade e flexibilidade rejuvenescedora. Mas por trás desta impressão gozosa se experimenta uma sensação angustiante de não dar pé. Este desconcerto nos insta a notar que, se a religião é a forma mais alta de relação pessoal do homem com o Deus da revelação, o modo mais direto e eficaz de abordar a complexa problemática da arte sacra é propor seriamente o problema da presença.Em sua documentada obra sobre A arte sacra atual, Juan Plazaola sublinha que
"para uma arte rigorosarnente sacra não basta certa fascinação nem o sentimento de um valor universal; é necessário que ao mesmo tempo em que fascina, estremeça até as fibras mais intimas de nosso ser. Deve sugerir a presença desse duende misterioso que espreita todas as janelas e as duas portas - de entrada e de saída - de nossa existência".
Aqui o sagrado é colocado em relação de proximidade com a presença do "numinoso", do mistério "tremendo e fascinante". Isso nos faz lembrar com energia que as formas autênticas de presença só surgem entre seres pessoais. Que exigências implica o fenômeno da presença? Em qual nível entitativo ocorre e que qualidades humanas mobiliza? Só um estudo sério e profundo do conceito de "presença" nos dará a amplitude de perspectiva necessária para abordar com mão firme temas tão sutis, delicados e freqüentemente tergiversados como o do poder do sensível-figurativo para exprimir o metassensível, a capacidade do "vazio" de dar albergue à experiência do infinito, a vinculação do silêncio com a revelação do que transcende o mundo das coisas à mão. Trata-se, no fundo, dos problemas suscitados pelo melhor pensamento existencial.Convém não confundir a experiência religiosa autêntica com a entrega a um clima de efusividade sentimental, de diluição de limites. A religião cristã é pessoal de raiz. Enquanto não dispusermos de uma vigorosa teoria estrutural das categorias que decidem a compreensão da pessoa e sua forma de instaurar-se como tal, estaremos em constante perigo de confundir os diversos modos de sentimento que o ser humano experimenta, sobretudo o sentimento meramente vital efusivo e o sentimento espiritual que é emoção diante da presença de algo elevado que transcende o homem e, transcendendo-o, o plenifica.


4. QUALIDADES DO ARTISTA: DECISÃO E REVERÊNCIA

A arte sacra atual corresponde a uma renovação teológico-pastoral realizada em fecunda aliança com a melhor filosofia da época. Devemos nos aprofundar neste humus intelectual se quisermos ter critérios fecundos de ação que esclareçam a mente dos artistas na situação de encruzilhada em que nos encontramos hoje.O homem contemporâneo vive numa eufórica preocupação pelo refinado e autêntico. O estudo entre linhas do movimento cultural dos últimos anos leva a suspeitar que só um profundo estudo filosófico dos conceitos fundamentais que decidem o sentido do processo criador humano pode nos libertar do grave risco de entender o simples como elementar-pobre e a pobreza como desmantelamento.Não basta, pois, afirmar que estamos diante de uma mudança de sensibilidade, pois as mudanças espirituais não correspondem a uma espécie de fatalidade biológica, mas a motivos culturais muito complexos que o homem pode em certa medida dirigir e modular. Não é totalmente o estilo que faz o artista, nem vice-versa. Estamos perante um desses processos "circulares" que tomam tão misteriosa e fecunda a vida do espírito em seus níveis mais altos. Por respeito a este mistério devemos incrementar nossa consciência de responsabilidade na tarefa de criação cultural, que deve reunir estas duas qualidades, só na aparência opostas: decisão e reverência Decisão para criar, e reverência aos altos valores aos quais o artista verdadeiro serve definitivamente.O homem de integração, alheio por temperamento ao perigoso jogo de divisão analítica, está otimamente disposto, sem dúvida, para colaborar na grande tarefa atual de pôr ordem e sentido no processo de criação artística.

in: QUINTÁS, Alfonso López. "Estética", Petrópolis, Ed. Vozes, 1992 - pág 99 a 107.

2 comentários:

Anônimo disse...

Olá

Meu nome é Elaine Rodrigues e sou estudante de Jornalismo,estou pesquisando para um trabalho fotográfico sobre estética da fé, baseada em vertentes do pensamento filosófico de platão, sobre a arte como condutora a verdade e ao mesmo tempo lendo sobre o que diz Nietzsche que descrevia a arte como instrumento de libertação e contradição a verdade (a dele no caso era contra o pensamento platonico-cristão) fiquei interessada, como católica, em que o enfoque de meu trabalho apesar de ter de preservar a imparcialidade jornalistica, mostrasse que a arte deve ser e é tambem uma expressão da fé, da experiência de Deus, sendo Deus o mais belo dos Belos, perfeito.

Quanto mais me aprofundo nos pensamentos filosóficos sobre a beleza e a arte, mais me questiono e reparo na estética da liturgia. Eu apesar de inexperiente, vejo a arquitetura e a arte sacra no ambiente liturgico, como parte dos rituais, e somente os servem com dignidade e expressão de sua importancia e essencia.

Encontro igrejas principalmente católicas no mundo afora, como referenciais de tempos e tendencia arquitetônicas, parte do patrimônico cultural mundial.

O que eu gostaria de sua ajuda é que para que eu não me perca, se o senhor poderia com seu conhecimento me dar algumas boas referencias bibliográficas sobre o assunto, sobre a posição da igreja sobre a importancia da arte na liturgia, sobre a arte como expressão do que se sente ou se quer dizer, e como instrumento de encontro consigo e com Deus.

Qualquer comentario de sua autoria sera bem vindo em meu trabalho, e estou buscando através de varios meios, que meu trabalho seja, imparcial, esclarecedor e acrescente uma visão livre sobre a beleza da fé. E o mais importante que dê margem aos que o vivenciarem para buscarem suas conclusões e abrirem debates acerca do assunto.

Espero contar com alguma ajuda.

Paz e Bem

Elaine Rodrigues

Pedro P. Palazzo disse...

Prezada Elaine, em primeiro lugar é preciso distinguir entre a estética *de* Platão e a teoria do neoplatonismo, que foi uma das bases para o desenvolvimento de uma estética cristã a partir do século IV. Uma das principais características dessa doutrina é associar a beleza como manifestação sensível da idéia verdadeira, que é Deus. Platão, por outro lado, pensava principalmente na beleza moral, espiritual, e não dava tanta ênfase na sua manifestação em objetos da percepção, como obras de arte.