domingo, 9 de setembro de 2007

A Espiritualidade das Catacumbas (cont.)


(última parte)

Espiritualidade bíblica

Pintores e incisores, escultores e epígrafos, parecem-nos embebidos e inspirados pela Palavra de Deus. Aqui, o Antigo Testamento é todo meditado e interpretado à luz do Novo Testamento. Parece ouvir os temas centrais dos Evangelhos e das Cartas. Assim como a Liturgia e a literatura patrística, também a Espiritualidade das Catacumbas alimenta-se das Sagradas Escrituras, a exemplo da mártir Cecília que, segundo as Atas do martírio "semper evangelium Christi gerebat in pectore" (carregava sempre consigo o Evangelho de Cristo), e no ato supremo do martírio indica com os dedos a Unidade e a Trindade de Deus.

Espiritualidade nova e transformadora

Descobre-se aqui a verdadeira revolução operada pelo Cristianismo. Estão presentes de modo particular dois tipos de personagens de grande força espiritual: o "mártir" e a "virgem". O "mártir" dá a vida para atestar a certeza da própria fé; dá-la com serenidade e sem lamento em meio ao desencadear-se de brutalidades e torturas; morre sem ódio pelo assassino, antes, implora o perdão para ele. Muitos cristãos sepultados nas catacumbas realizaram de modo sublime e em inúmeros casos o martírio cruento. A figura da "virgem" cristã não está ausente das catacumbas. É significativo sobre isso o poema damasiano em honra de sua irmã Irene, sepultada no complexo calistiano:
"... Esta, quando ainda em vida, tinha-se votado a Cristo,assim que o mesmo santo pudor provou o mérito da virgem...E agora, quando Deus vier até mimlembra-te de Dâmaso, ó virgem,para que a tua luz me ilumine".
Saindo das Catacumbas de São Calisto, a última grande lápide que se vê no fundo da escada é a de Baccis. Grandes e rudes caracteres vermelhos em pedra cinzenta contam uma humilde história. Quem meditá-la perceberá com os olhos da fé, transparecer por detrás das letras dois vultos: um delicado, da menina morta, e outro áspero, do pai, no qual brilha um sorriso de ternura cheio de lágrimas. Eis as palavras: "Baccis, doce alma. Na paz do Senhor. Viveu 15 anos, 75 dias. (Morreu) nas vésperas das calendas (dia 1º) de dezembro. O pai à sua dulcíssima filhinha ". Uma onde divina de pureza e de ternura entrara com a fé de Cristo também nas famílias mais humildes.
Nas mesmas catacumbas desceu certo dia um peregrino em busca de conforto. Entrou rezando, e no fundo da escada, confiou à parede um augúrio de vida feliz entre as almas diletas para a sua morta: "Sofronia vivas cum tuis" ("Sofrônia, vivas com os teus"). No fundo da escada o querido nome aparece de novo com um augúrio de vida em Deus: "Sofronia, vivas in Domino" ("Sofrônia, vivas no Senhor"). Enfim, num cubículo ao lado de um arcossólio, a escrita aparece uma terceira vez. Na oração, o luto perdeu a sua amargura e tornou-se uma esperança cheia de imortalidade: "Sofronia dulcis semper vives in Deo" ("Sofrônia, vivas docemente em Deus para sempre"), escreve o peregrino no alto. Mas parece que de seu coração acalmado transborde ternura, e ele ainda grava: "Sofonia, vives...": (Sim, Sofrônia, tu viverás!...).
Admirável síntese em que se funde um drama humano e de luto com a expressão apaixonada da fé consoladora: vida além da morte, vida entre os caros, vida perene, vida em Deus.Enfim, com as relações familiares aparecem nobilitadas as Relações sociais. As sepulturas cristãs ignoram indicações de cargos e honras, habituais nos epitáfios pagãos.São freqüentes, porém, as indicações, não só de profissões elevadas, como a de Dionísio médico e padre, mas também de ocupações humildes, dos pobres "banausòi", "operáios", desprezados pelos sábios do paganismo. Temos só em São Calisto o hortelão Valério Pardo que traz na mão esquerda um maço de hortaliças e na direita a foice; Márcia Rufina, a digna patroa, a quem Segundo Liberto coloca uma inscrição com o símbolo da oficina: um martelo e a bigorna. Num arcossólio a vendedora de hortaliças senta-se entre seus maços de verdura, etc. A religião do Artífice de Nazaré tinha dignificado o trabalho.Pode ser útil acrescentar e esses aspectos da espiritualidade ilustrados pelo saudoso estudioso P. Ugo Galizzia, SDB, professor de Exegese do Novo Testamento e de Arqueologia Cristã no Pontifício Ateneu Salesiano de Turim (Itália),um outro aspecto da espiritualidade das catacumbas freqüentemente esquecido, ou seja, a espiritualidade do silêncio.


Espiritualidade do silêncio


Pode parecer estranho falar de espiritualidade do silêncio, porque o silêncio, à primeira vista, é apenas um vazio sem sentido, pura ausência de palavras, pensamentos e sentimentos. Na realidade, o silêncio da palavra, da imaginação e do espírito é uma dimensão humana fundamental: pertence à nossa essência, porque é o vigilante do nosso mundo interior, a condição prévia da escuta, a necessária premissa de toda comunicação humana.Percorrendo as galerias das catacumbas ou detendo-nos nas criptas, somos imersos numa atmosfera de silêncio, que é contudo apenas o silêncio de um antigo cemitério. Ele, porém, atinge-nos intimamente, porque não é silêncio de morte, de saudade sem esperança de tudo que era caro aos Cristãos durante suas vidas. É silêncio de plenitude, repleto das vozes dos mártires que viveram a nossa vida, e que corajosa e constantemente testemunharam a própria fé não só em tempo de paz religiosa, mas sobretudo nas perseguições.Este silêncio é cheio de paz, de esperança numa futura vida melhor na luz da ressurreição de Cristo. O silêncio das catacumbas está cheio de história e de mistério; é sagrado, significativo e mais eloqüente do que as próprias palavras; é enriquecedor porque nos leva a refletir sobre a Igreja das origens, o heróico testemunho dos Mártires, como também o testemunho ordinário dos simples cristãos, que não sepultaram a própria fé debaixo da terra, mas viveram-na na vida de cada dia, na família, na sociedade, no trabalho, em cada tarefa ou profissão.É um silêncio comunicativo, que fala ao coração e à mente dos peregrinos, que lhes revela o mundo desconhecido da Igreja primitiva, com suas classes sociais, sentimentos e afetos; com as penas e as esperanças dos Cristãos sepultados nas catacumbas. Não podemos sufocar esse silêncio, que fala por si mesmo, ou melhor, grita mais imperiosamente. São Gregório Magno falou do "strepitus silentii", do "fragor do silêncio", uma marca que se adapta perfeitamente ao silêncio das catacumbas.Esta atmosfera de silêncio, evocativa da vida e do sacrifício dos primeiros Cristãos, constitui um lugar privilegiado de meditação espiritual, de revisão de vida, de renovação da fé. O seu testemunho corajoso e fiel interpela-nos pessoalmente. Qual é a "nossa" resposta hoje ao amor de Deus, numa sociedade que talvez não é tão hostil como a deles, mas que é principalmente indiferente aos valores religiosos?As catacumbas deixam-nos uma mensagem de fé silenciosa, mas clara, tão mais necessária porque a nossa época está doente de rumor, de exterioridade, de superficialidade. Aqui as palavras não são necessárias, porque as catacumbas falam por si mesmas.


Isto é o Cristianismo, em seu grau máximo de simplicidade e de intensidade, incorporado em figuras de mártires, confessores e virgens, que falam das criptas e deambulatórios, das pinturas e lápides consagradas por quase dois milênios de veneração. É justamente esse o caráter de essencialidade elementar, eficaz, inexaurível, que fez das catacumbas romanas uma das metas prediletas da Cristandade peregrina.Nos passos dos mártires e dos primeiros cristãos, a espiritualidade das catacumbas haverá de ajudar-nos a celebrar o Jubileu com uma verdadeira e profunda renovação da nossa fé para "viver da plenitude da vida em Deus" (Tertio Millennio Adveniente, n. 6).