sábado, 12 de junho de 2010

Apontamentos sobre o diálogo com os arquitetos

“É necessário começar uma viagem, que será longa, para tentar tecer de novo o diálogo, depois do divórcio que houve com os artistas. (…) Isto acontece já na arquitetura, com igrejas feitas por grandes arquitetos - algumas mesmo belas igrejas. Inicialmente, os fiéis têm perante elas alguma estranheza, mas depois, progressivamente, entram e percebem a beleza de uma igreja feita por Álvaro Siza, Richard Meier, Mario Botta, Renzo Piano, Tadao Ando.” (D. Gianfranco Ravasi, 2008)
Depois de um parêntesis de quase três décadas, assistiu-se no final do século XX a um renascente interesse por parte dos arquitetos pela arquitetura religiosa em geral. Num registo que tem à cabeça a elite arquitetónica mediática internacional, foram, de facto, vários os projetos que trouxeram de novo esta tipologia para as páginas dos jornais e das revistas da especialidade: nas catedrais, e depois da de Evry, França, pelo suíço Mario Botta, ou da de Manágua, Nicarágua, pelo mexicano Ricardo Legorreta, Rafael Moneo terminou a de Los Angeles, e Santiago Calatrava apresentou uma proposta para a conclusão da de São João o Divino, em Nova Iorque.



Rafael Moneo (Los Angeles)
Mais recentemente, Renzo Piano – o arquiteto do Centro Pompidou em Paris – finalizou a grandiosa obra do santuário do Padre Pio, em San Giovanni Rotondo, Itália, com capacidade para 60 mil pessoas, enquanto que em Fátima se inaugurava a igreja da Santíssima Trindade, com 9000 lugares cobertos, da autoria do arquiteto Alexandros Tombazis. Nos mosteiros, destacou-se o cisterciense de Novy Dvur, na República Checa, pelo minimalista britânico John Pawson.



Rafael Moneo (Los Angeles)
Menor dimensão não significou menor produção, tendo sido registadas capelas como a de Santo Inácio, na Universidade de Seattle, de Steven Holl, a de São Bento em Sumvitg, Suiça, de Peter Zumthor, as realizadas por Mario Botta em Ticino, Itália, e as do japonês Tadao Ando, com uma poética inspirada na obra de Kaija e Heikki Siren.
Mas foi na categoria igreja paroquial que surgiram as obras que maior destaque mediático alcançaram: em primeiro lugar, a galardoada igreja de Santa Maria, em Marco de Canavezes, de Siza Vieira, seguida da igreja de Deus Pai Misericordioso, em Roma, de Richard Meier, vencedora do concurso internacional “igreja do ano 2000” promovido pela Diocese de Roma.



Richard Meier (Roma)
Se do ponto de vista arquitetónico, esta vasta produção se apresenta deveras estimulante, por outro lado, levanta questões quanto à tendência atual para que a avaliação da obra religiosa se limite a aspetos formais e construtivos, num esteticismo claramente insuficiente, uma vez que os construtores de igrejas devem procurar não apenas a beleza da forma, mas também a verdade do Espírito.



Richard Meier (Roma)
A chave da arquitetura religiosa é que, como nota Gio Ponti, “religious architecture is not a matter of architecture but a matter of religion”, ou seja, uma igreja não é para ser apenas bela, mas a sua forma deve ser consequência do espírito que a anima e lhe dá razão de ser, o que lhe confere duas dimensões fundamentais, distintas mas complementares: uma interna, enquanto instrumento ao serviço da comunidade crente para sua reunião e louvor a Deus; e outra externa, ao ser símbolo e reflexo de uma mensagem que a Igreja é chamada a transmitir e apresentar ao mundo. Destas duas, a primeira terá sempre a prioridade.



Renzo Piano (San Giovanni Rotondo)
Todo o processo de construção de uma igreja deve, por conseguinte, refletir desde o início sobre as características próprias do cristianismo no começo do terceiro milénio: uma Igreja ainda a assimilar um Concílio Ecuménico ao mesmo tempo que tende para um menor número de fiéis, mas em que estes revelam uma maior e mais profunda experiência de Deus, uma fé mais adulta e esclarecida, um maior conhecimento teológico e bíblico, e uma eclesiologia fundada na dignidade e unidade recebidas no batismo, conforme o espírito Neo-Testamentário e a tradição patrística.



Renzo Piano (San Giovanni Rotondo)
As igrejas antes de serem formas concretas, são necessidades vivenciais. Não é por acaso que o mesmo termo que é usado para designar a assembleia que se reúne – Igreja / Ecclesia – designa o lugar da sua reunião, e este espaço deve ser expressão da fé cristã da comunidade, uma vez que a organização da arquitetura é um reflexo direto não só de uma determinada conceção de Igreja, mas também de uma eclesiologia precisa.



Steven Holl (Seattle)
Ou seja, as igrejas devem começar a ser construídas primeiramente pelo seu verdadeiro interior: a comunidade e sua fé cristã, e a arquitetura religiosa do século XXI só será justificada se se afirmar como um meio para os cristãos crescerem na fé que professam e na caridade que são chamados a viver. É este o sentido de um conhecido esquema desenhado pelo arquiteto Rudolf Schwarz: o mais importante não é que as igrejas tenham um aspecto moderno, mas que o sejam espiritualmente no seu interior, ao permitirem um aggiornamento da Igreja reunida. (Aggiornamento tendo sido uma palavra-chave do Concílio Vaticano II)



Steven Holl (Seattle)
É preferível uma igreja antiga, onde se possa desenvolver uma assembleia litúrgica eucarística em conformidade com o espírito do Evangelho, do que uma outra que se reconheça como contemporânea, mas que esteja organizada segundo modelos que dificultam a vivência cristã da comunidade.
A fé cristã é uma fé assente em relações e encontros, do homem consigo mesmo e com os outros homens e de todos com Deus. Crescer e aprofundar estas relações num sentido contrário ao da organização de um espaço é difícil, senão mesmo impossível.



Rudolf Schwarz
Se pensarmos que o maior esforço e a maior atenção dos arquitetos nos últimos tempos se dirigiu quase exclusivamente para projetar envolvimentos arquitetónicos mais ou menos sagrados, místicos, espirituais, ou então celebrativos, ideológicos ou artísticos, com formas ascendentes, tratamento poético da luz, vãos, cúpulas, decorações mais ou menos abstratas, arrojos estruturais, ou pobreza de materiais, etc., deixando sempre para depois a organização do espaço litúrgico, damo-nos conta de que os resultados têm sido sempre insatisfatórios e às vezes, um fracasso completo” (1).



Siza Vieira (Marco de Canavezes)
Não surpreende, portanto, que a muito fotograda igreja de Marco de Canavezes – peça arquitetónica de grande qualidade – tenha sido classificada por Nuno Teotónio Pereira como “um retrocesso absoluto” e “um voltar atrás” enquanto Igreja (2).
Não quer isto dizer que o estilo e a forma arquitetónica não sejam importantes. O próprio Segundo Concílio do Vaticano, na constituição Sacrosanctum Concilium sobre a sagrada liturgia, defende que a Igreja deve promover a arte do seu tempo, demonstrando confiança no tempo presente e nos múltiplos meios que a criatividade contemporânea tem à sua disposição.



Siza Vieira (Marco de Canavezes)
Neste sentido, a igreja de Marco de Canavezes é um contributo importante para a arquitetura religiosa, e entende-se que seja considerada em Portugal como no estrangeiro, ponto de passagem incontornável para o(s) construtor(es) de igreja(s). E é sob este ponto de vista que se percebem os vários prémios internacionais que lhe foram atribuídos - Prémio IberFAD de Arquitetura, em 1998, pelo Fomento de las Artes Decorativas de Barcelona e Prémio Internacional de Arquitetura Sacra, em 2000, pela Fundação Frate Sole -, bem como o destaque recebido no 4º Congresso Internacional Architettura e Liturgia nel Novecento, realizado em Veneza em 2006.



Peter Eisenman (Roma)
Mas a vida cristã que vivemos, numa realidade cultural, social e tecnológica totalmente nova e pela primeira vez verdadeiramente global, ao mesmo tempo que se enraíza e alicerça nas suas origens, deverá dar forma a edifícios consentâneos, sob o risco de se constituírem apenas como contentores de rituais e palavras vazias.
A proposta desconstrutivista de Peter Eisemann para a igreja do ano 2000, em Roma, é um exemplo claro. Ao separar a assembleia do presbitério em edifícios distintos, onde, num, a primeira assiste em ecrãs ao que outros realizam isolados, denota um total desconhecimento do espírito do corpo místico de Cristo. Paralelamente, as suas formas agitadas, e pelo menos aparentemente desordenadas, retratam bem o estado da sociedade e do mundo, mas não o lugar de paz, harmonia e unidade a que a Igreja é chamada a ser hoje de um modo especial. Não vale tudo ou qualquer coisa, portanto.



Peter Eisenman (Roma)
Regressar simplesmente à fórmula “as obras aos grandes homens”, como dizia o P. Couturier, depositando-se a esperança da construção de uma igreja unicamente na excelência da estética arquitetónica, sem o envolvimento participado da comunidade e o entendimento profundo do espírito que vivifica na Igreja, resultará certamente em belas obras de arquitetura, mas não nas igrejas que a Igreja do século XXI necessita.

Sugestão de Leitura:
O Local de Celebração. Arquitetura e Liturgia

Referências:
(1) Bergamo, Maurizio, “Espacios celebrativos”, Ediciones EGA S.L., Bilbau, 1997.
(2) Nuno T. Pereira, entrevistado por Ana Vaz Milheiro e Isabel Salema, in Mil Folhas, Jornal Público, Sábado, 26.06.2004.
Arq.º João Alves da Cunha
© SNPC | 20.02.2009