sábado, 30 de maio de 2009

ARQUITETURA E LITURGIA, O VALOR DO ESSENCIAL



O EXEMPLO DA IGREJA DO MILÊNIO EM ROMA

A construção religiosa nova e a restauração de Igrejas que são Patrimônios tombados são, para a grande maioria dos profissionais da área,  um conceito puramente utilitário.  Desde este ponto de vista estritamente técnico seria o bastante, entre outras coisas, uma boa acústica, uma distribuição perfeita de áreas, ou a realização de técnicas sofisticadas de restauro somado a uma iluminação exuberante para mostrar o monumento.

Na verdade, de um ponto de vista que ultrapassa o meramente técnico, o que deve ser mostrado, antes do monumento,  é a presença do Deus Vivo.

Mas outro lado da questão deve ser levado em conta: é que o templo  não é apenas uma obra de arte ou a nova casa de Deus; não é somente um espaço sacro ou mesmo a “morada” do Senhor na qual o fiel possa entrar para adorar. O templo é, sobretudo, o lugar onde se realiza a liturgia. Fato que deve ser sempre considerado com primazia entre todos os conceitos primários para a idealização de projetos.

O artigo 124 do Capitulo da Constituição do Concilio Vaticano II nos mostra pistas para enfrentar o tema. Nele se recomenda a edificar os templos de forma a fomentar a participação da assembléia. Só assim temos uma verdadeira arte sacra:

 “Al edificar los templos, procúrese con diligencia que sean aptos para la celebración de las acciones litúrgicas y para conseguir la participación activa de los fieles”

 Participação entendida como a passagem de uma forma de culto distante para uma confluência consciente entre povo, sacerdote e  rito, significa passar de uma liturgia de ouvinte para a de comunhão e partilha, significa passar de uma arquitetura estritamente racional para um espaço partilhado entre o Deus Vivo e o homem.  Segundo Simson,[2] grande historiador da Arquitetura religiosa medieval, a liturgia se aplica metaforicamente a todos os templos, independentemente do seu estilo  ou forma. Para ele o aspecto externo pode ser uma prova, mas não uma causa dessa correspondência mística entre a estrutura visível e uma realidade invisível. Do mesmo modo, o  interior deve ser a verdade sobrenatural que expressa a vida que reside na liturgia, o culto é a forma dessa aliança. Assim também Deus oferece a Abraão uma aliança para constituir o povo peregrino, sendo o lugar do culto, e o seu simbolismo essenciais para  manutenção desse pacto;

“Moisés baixou e contou ao povo o que havia falado o Senhor. Então Moisés colocou por escrito todas as palavras do Senhor, madrugou y levantou um altar ao pé do monte com doze estrelas pelas doze tribos de Israel” (Ex 24, 3s). 

A LITURGIA E A ARQUITETURA ATRAVES DA HISTÓRIA

No contexto da idade Media, ao construir Catedrais, o arquiteto herdava o ensinamento dos antigos mestres, ou seja, estava garantida a permanência e a continuidade do processo evolutivo da arquitetura religiosa intimamente ligada à teologia escolástica. Nesse mundo que buscava a Jerusalém Celeste[3], o  Habitaculum Dei  in spiritu”[4]. Assim, a catedral gótica representava não somente a expressão do mundo acerca de Deus, mas também a própria comunhão entre Ele e o Homem  através da arquitetura, numa verdadeira celebração litúrgica por meio da arte.

Depois disso, o primeiro sistema racional e mais alheio a teologia corrente, produziu no renascimento a inspiração da beleza clássica, ou seja, com os pressupostos gregos e romanos na Florença do século XIV, cheia de humanismos com seus tratados e estudos científicos, origem bastarda da nossa Academia. Nesse tempo, o espírito religioso, procedente dos intensos séculos anteriores, lutou intensamente por aflorar na geometria  objetiva e desapreensiva do Renascimento.  Assim mesmo triunfou a arte sacra nessa humanista arquitetura reavivando o espaço de celebração até que na conjuntura critica da contra-reforma, a glória de Deus reapareceu exuberante na grandiosa vaidade do Barroco. A liberdade de expressão barroca trouxe para o projeto arquitetônico religioso - agora já no Brasil - a possibilidade de se trabalhar com questões culturais e contextos de vida, o que contribui efetivamente para a construção de uma  identidade arquitetônica inculturada e que deixa marcas profundas no modo de perceber o mundo e produzir arquitetura religiosa até mesmo na contemporaneidade.

Apesar de tudo, foi o Concilio Vaticano II que ofereceu novo sopro ao mundo da arte sacra, que é necessário ser resgatado a cada dia em nossos projetos.

LITURGIA E ARQUITETURA CONTEMPORÂNEA

 “Brilhe teu rosto sobre o teu santuário.”  (Dan, 9, 18.)

Uma pergunta se delineia no cenário contemporâneo e nos sugere uma fecunda reflexão e também uma proposta de conduta. Somente as diretrizes conciliares são capazes de zelar para uma boa arquitetura religiosa em um mundo tão complexo e fragmentado como o nosso e uma Igreja que se expressa de tantas maneiras? Nesse sentido, cremos que na concepção do templo tudo tem que ser arte[5]. Como as catedrais medievais houve uma teologia fervorosa de cantores, assim o templo deve ser obra de uma arte coletiva, participativa, com sentido real e plural da Liturgia[6]: uma arte da comunhão, como os materiais bem trabalhados e cumprindo cada um, sua função, constituindo, assim, a construção do edifício, a imagem do Corpo Místico de Cristo. Uma arquitetura que assuma na sua concepção todas as artes a exemplo da Liturgia.

Fazer um templo ou restaurar uma Igreja é redimir as coisas, é estabelecer liames. Razão por que tudo deve ser executado com um espírito de cooperação ao sacrifício eterno de Cristo. Nesse sentido, o homem está chamado a completar as regras valiosas definidas pelo Sacro Concilio e suscitar a operação do Espírito Santo para renovar a face da terra e conseqüentemente a arte da Igreja que por dois mil anos foi a grande protagonista do mundo ocidental.

Assim, a arquitetura da liturgia é a inteligência das coisas a serviço do culto. Vejamos o exemplo da Igreja do Milênio, encomendada pelo Vaticano por ocasião do Jubileu 2000 e escolhida por meio de um concurso internacional. Nos parece interessante para uma percepção prática da reflexão proposta as palavras.

IGREJA DO MILÊNIO, UMA TENTATIVA DE EXPRESSAR A LITURGIA NA IGREJA CONTEMPORANEA

"Esta Igreja ficará como recordação perene do XXV aniversário do meu Pontificado” Papa João Paulo II


O lugar escolhido  foi a Tor tre Teste, um bairro obreiro na periferia de Roma.  Tratava-se de um bairro degradado com blocos residenciais dos anos sessenta e com poucos espaços de usos públicos. Richard apresentou um programa complexo e de acordo com o que, na verdade, é uma exigência da arquitetura religiosa contemporânea: projetar não só o edifício isolado, mas também coordenar uma série de funções que atendam às necessidades da comunidade.

Esses novos espaços, como salas de aula, auditório, cafeteria, banheiros, lugares de encontro comunitário visam a tornar mais ativa a participação do leigo na vida da Igreja. Estas novas orientações pastorais e litúrgicas surgiram na Igreja após o concilio Vaticano II,.. O edifício é uma composição de elementos arquitetônicos ordenados de forma a criar uma ordem que atenda a essas novas perspectivas pastorais e, além disso, traz consigo uma gama de elementos simbólicos e dogmáticos da história da Igreja.  


Richard se vale dos símbolos sacramentais para organizar o complexo de forma a dar um sentido de religiosidade mais profunda, perdido em alguns projetos. Dois eixos percorrem o terreno e se cruzam dentro da Igreja. A fachada da entrada é uma parede de vidro, separadas por três esbeltas folhas de concreto que simbolizam a Santíssima Trindade. O vidro e as esbeltas paredes côncavas dão uma idéia de convergência, movimento e transparência, ou seja, a possibilidade de ver o interior, também expressa a condição de distância e proximidade implicando peregrinação. As três peças que na fachada são aparentemente distintas, se confluem no interior, gerando outros dois espaços menores e ligados entre si. São eles, a capela, o batistério. Nas paredes laterais, Richard Meyer se vale da alta tecnologia para resgatar a iconografia religiosa. Grandes telões de cristal líquido dão lugar a projeções da Via Sacra.

            Pelo caminho que optamos nesta brevíssima reflexão, só poderemos esperar – e esperamos com fé – que o templo volte a ser e seja sempre, mais do que um lugar santo, o lugar da santidade do homem porque aí emergem os sinais de sua busca eterna pelo Deus da vida. Um Deus que o revela a si mesmo levando-o a comungar com o outro e com todos, irmanando-se no CRISTO SENHOR.

"Além do Espaço Litúrgico o prédio possui quatro pisos, no subsolo, duas grandes salas de reuniões e um auditório abrem-se para um pátio. No térreo o mesmo nível da nave principal - ficam as áreas de trabalho dos padres e salas de catequese, que ocupam ainda o primeiro piso. No segundo andar, está a residência do pároco, com sala, cozinha e quatro quartos."

Por Leônidas José de Oliveira[1] (artigo originalmente escrito em Italiano para a Revista CHIESA OGGI – ARCHITETTURA E COMUNICAZIONE, 2005)

[1] Mestre em Restauração e Reabilitação do Patrimônio Arquitetônico e Urbano, doutorando em Teoria da arquitetura e projetos, com ênfase em Arquitetura Religiosa, UAH, Madrid e UVA, Valladolid, Espanha.

[2]Otto von Simson, La catedral gótica, Alianza, Madrid, 1980, p. 120.[3] Apocalipse de São João, capitulo 21. Também no antigo testamento, o profeta Ezequiel foi transportado durante uma visão a uma montanha e lhe mostrou a características precisas do templo de Salomão em Jerusalém. No novo testamento, a ideia de Jerusalém está desenvolvida para representar uma idéia de perfeição. Para complementar ver: HUMPHREY, Caroline. Vitebsky, Piers. Arquitectura Sagrada, Op. Cit.; p. 13. [4]Os fieis e as Igrejas se fundamentam nos cimentos dos apostolos e dos profetas, uns e outros son Habitaculum Dei  in spiritu e portanto significavam a mesma coisa. Ver: Efésios, 2,19. A construção de Igrejas como casa de Deus pode também ser interpretado como símbolo da “Civitas Dei, de Regnun Dei”. É nesse sentido que se percebiaos lugares numinosos, ou seja, que possuem algo de transcendencia. Ver: FRANKL, Paul. Arquitectura Gótica. Manuales de Arte Cátedra, Madrid, 2002, pág. 411.[5] Alférez, Madrid, mayo de 1948, Año II, número 16 [páginas 4-5] José Luis Fernández del Amo [6] ARQUITECTURA Y LITURGIA, Louis Bouyer (Grafite Ediciones)